sexta-feira, 19 de março de 2021

A gata que sabia demais

Havia recém completado seis meses de namoro com a Ju quando tudo aconteceu.

Lembro-me, como se fosse hoje, do dia em que a mãe dela, também conhecida como minha sogra, durante um café da manhã qualquer, disse-me que tinha uma espécie de segredo para contar.

E que apenas não teria feito isso antes porque tinha medo de me assustar.

Tudo isso sob o olhar vigilante da Juliana, que, ao que tudo indicava, olhava para sua mãe com uma expressão do tipo "será que não é melhor esperar mais um pouco?"

Talvez porque eu faça esse tipo de coisa o tempo todo, a princípio, achei que se tratava de algum tipo de brincadeira.

Então, educadamente, limitei-me a sorrir.

Os risos levemente nervososcontudo, convenceram-me de que estavam mesmo falando sério.

Naturalmente, fiquei bastante curioso

O que seria esse segredo familiar tão peculiar, afinal? - lembro-me de ter pensado.

Com o avançar dos segundos, porém, a curiosidade foi dando lugar ao receio.

E aquele suspense todo em torno da iminente revelação não estava ajudando em absolutamente nada.

Literalmente, estava com medo do que estava prestes a ouvir.

Até porque, se fosse algo bom, por que teriam demorado tanto tempo para me contar?

Por quê?

Inúmeras coisas, pois - inúmeras mesmo -, passaram pela minha cabeça.

Minha namorada seria filha do boto? Terraplanista?; ou, pior, uma eleitora do desgoverno Bolsonaro?

Já agoniado, pedi que me contasse logo qual seria o segredo que, pelo jeito, vinha sendo guardado de geração em geração na família.

Minha sogra, então, sem mais rodeios, disparou:

- A fifi, nossa gata, faz xixi na privada.

Antes mesmo que pudesse assimilar a informação recém jogada em meu colo, um "como é que é?" evadiu-se da minha boca.

Ela, então, como quem já esperava a pergunta, rapidamente, explicou-me que havia ensinado a gata de estimação a fazer xixi em uma privada que fica localizada na parte inferior da casa, praticamente não utilizada.

Explicou-me, ainda, que isso é mais comum do que parece, o que foi por mim confirmado em uma rápida e discreta busca no google.

De todo modo, sendo comum ou não, a informação ficou ressoando em minha cabeça por alguns minutos.

Juliana, aos risos, disse à mãe que talvez tivessem revelado o segredo cedo demais, com o que tive que concordar.

Não estava preparado para tamanha revelação.

Como assim, mano?

Talvez seja apenas impressão minha, mas, desde então, parece que a gata tem me olhado de forma diferente.

Com olhos de quem diz "eu sei que você também sabe".

E foi assim que inventei seu mais novo apelido:

A gata que sabia demais.

terça-feira, 9 de março de 2021

Maldita pontualidade britânica

Não precisa ser nenhum discípulo de Freud para saber que todos nós possuímos alguns traumas oriundos da infância.

"Experiências emocionais desagradáveis" que, invariavelmente, acabam influenciando nosso comportamento na fase adulta.

Um dos meus traumas - o que, aliás, constatei depois de muita reflexão - diz respeito à pontualidade. 

Mais precisamente, à falta dela.

Criança "emperebada" que era, costumava ir muito a médicos variados, que, por sua vez, atendiam em horários bastante conflitantes com minha deficitária agenda infantil

Como consequência, volta e meia, chegava atrasado na escola.

E eu odiava isso com todas as minhas forças

É que, como era muito tímido, não suportava o fato de chegar na escola no decorrer da aula, especialmente por conta do olhar vigilante e julgador dos coleguinhas malévolos de plantão.

Digo, pois, sem qualquer medo de errar, que esses atrasos inocentes me causaram uma espécie de trauma. 

Afinal, mesmo tendo se passado tantos anos desde então, ainda hoje, sou a pessoa mais pontual do mundo.

Do tipo que chega no local com antecedência mínima de 10 minutos (se for um evento informal, claro).

Ao que tudo indica, minha mente não está muito interessada em reviver a sensação que me acometia quando chegava atrasado na escola.

Pode parecer algo bobo não gostar de ser pontual.

Até porque, grande parte das pessoas acha que isso, na verdade, é uma baita qualidade.

Contudo, na prática, não é bem assim que as coisas funcionam.

O problema da pontualidade é que, via de regra, costuma ser uma via de mão única

Tanto que nem mesmo a empatia inerente ao ato de fazer com que outra pessoa não espere é capaz de impedir um atraso.

Na minha próxima vida, pois, quero ser aquele que não está nem aí para o horário marcado.

Mais do que isso, aquela pessoa desprendida ao ponto de sequer possuir um relógio.

Para quem o horário marcado, no fim das contas, não representa nada mais do que uma mera formalidade comumente ignorada.

E que ri descaradamente quando lhe cobram por ter se atrasado.

Enquanto isso não acontece, sigo com minha pontualidade britânica. 

E, antes de qualquer coisa, chateado por ter que ficar esperando - mais e mais - pelos outros que não possuem qualquer culpa pelos meus malditos traumas particulares.

Esperemos, então.

Esperemos.

Foto: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/talento-em-pauta/pontualidade-no-trabalho-e-suas-consequencias/