Primeiro e segundo capítulos do livro

Livro Segunda Dose

Capítulo I


A garrafa de vinho vazia ao seu lado era deveras esclarecedora. O indicador maior da turbulência pela qual Renato estava passando. Por mais que tentasse, jamais conseguiria descrever o misto de sentimentos que o envolviam, e isso era só o começo.
Ainda atordoado pela grande quantidade de vinho ingerida na noite anterior, Renato levantou-se da cama em meio a lágrimas. Chorou com vontade, com toda a dor que lhe era permitida naquele momento. Sua vida já não fazia mais sentido, assim como tudo e todos que o cercavam.
Eram, aproximadamente, 9 horas da manhã de uma terça-feira. Renato, agora, estava em pé, em cima do parapeito da cobertura de seu prédio. A essa altura, ainda embriagado e atônito, já não se importava mais com sua vida social, seu trabalho e com as obrigações cotidianas inerentes a todo e qualquer homem, pensava apenas em se livrar da forte dor que habitava seu peito. A morte flertou com Renato, e ele sorriu.



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Capítulo II

O subchefe do setor de recursos humanos estava ansioso naquela segunda-feira. O calor era intenso e nem mesmo o ar-condicionado de sua sala parecia minimizar os efeitos daquela atípica manhã de princípio de primavera. 
- Dona Sandra, rápido com esses currículos. Hoje, eu mesmo vou fazer a seleção do pessoal – afirmou ele. – Faltam muitas pessoas ainda?
- Não, Senhor Renato. Faltam apenas oito – respondeu a secretária. – Quer que eu mande-as entrar?
- Ainda não. Quando chegar a hora, eu lhe aviso.
 Renato Duarte trabalhava em uma empresa chamada Dutra Exportadora de Móveis Ltda., cuja matriz estava localizada na entrada do Centro de Porto Alegre – o coração pulsante da metrópole Gaúcha. A empresa era considerada uma das gigantes do setor de exportações, e fora eleita no ano anterior por uma revista especializada uma das oito melhores do país.
Era dono de um cargo de prestígio na exportadora – desejado por muitos de seus colegas -, sendo uma espécie de subchefe do setor de recursos humanos. Mesmo assim, já fazia algum tempo que não possuía muitas ambições. Com o transcurso do tempo, passou a defender a ideia de que trabalho (ainda que bem executado) servia para ganhar dinheiro e nada mais.
- O Senhor aceita um cafezinho, Senhor Renato?
- Não, Dona Sandra. Obrigado.
- Está com fome? Posso buscar algo para o Senhor comer? Uns brioches, quem sabe?
- Não, Dona Sandra...
- Ou então um suco? Uma vitamina? Na padaria ali em frente tem umas vitaminas incríveis e...
- Estou muito ocupado hoje – disse Renato, bruscamente, interrompendo a secretária. - Não tenho tempo nem para comer. Por gentileza, deixe-me só. Preciso realmente trabalhar.
Renato sempre incentivava seus subordinados a darem o máximo de si dentro do expediente normal de trabalho, rechaçando qualquer ideal contrário ao seu. No seu setor, aliás, horas-extras não eram sequer cogitadas.
Alguns poucos membros do alto escalão da exportadora faziam vista grossa em razão de sua falta de disponibilidade, porém davam valor aos resultados empíricos de seu trabalho, já que era muito eficiente naquilo que fazia. Era o responsável direto pela contratação de novos funcionários e reconhecia um futuro bom empregado apenas pelo olhar. Sem dúvida, os anos de experiência à frente de seu cargo haviam lhe conferido um conhecimento humano inigualável.
Suas habilidades eram muito bem recompensadas por sua alta remuneração (também naturalmente invejada por muitos). Seu salário aproximava-se ao de alguns diretores da empresa, o que incomodava várias pessoas; inclusive Henrique Soares, o Diretor-Geral do setor de Recursos Humanos, a quem estava diretamente subordinado.
Era graduado em administração de empresas e chegou a cursar quatro semestres de psicologia, mas acabou desistindo do curso. Acreditava que ao estudar psicologia, adentrando no mérito positivado da natureza humana, talvez perdesse a espontaneidade, um de seus maiores atributos.
Além de ser famoso na empresa por seu alto grau de competência, era conhecido por sua vida boemia. Poucos eram os que desconheciam sua disposição para o álcool. Bebia muito, sem dúvida. Contudo, tentava camuflar ao máximo seu hábito nada saudável, herdado de seu pai.
Renato tinha 38 anos, e fora casado durante sete. Sua ex-mulher chamava-se Flávia Albuquerque, era dois anos mais nova e não fazia jus ao prefixo “ex”. Vivia atormentando-o e abusando das prerrogativas de ex-esposa.
- Senhor Renato, os candidatos já estão esperando. Posso chamá-los?
- Ainda não, Dona Sandra. Ainda não – respondeu ele em meio aos papéis e cada vez mais irritado.
Um dos motivos que levou o casal à separação foi o fato de que Renato nunca quisera ter filhos, sob a alegação de que era muita responsabilidade. Na realidade, esse era apenas um subterfúgio por ele utilizado para disfarçar o verdadeiro.
Não bastasse isso, a rotina diária ao lado de Flávia acabou por revelar um lado de sua mulher até então desconhecido; em questão de meses, sua esposa mostrou-se uma pessoa amarga e difícil. Impossível conviver assim, pensara Renato minutos antes de assinar uma procuração outorgando poderes a seu advogado para ajuizar a ação de separação.
- Dona Sandra!
- Sim, Senhor Renato. A próxima candidata é a...
- Dona Sandra, Dona Sandra. Por gentileza, vá até o setor jurídico e traga o parecer sobre a demissão daquele funcionário sobre o qual conversávamos ontem.
- Mas e a próxima candidata? Ela...
- Ela pode esperar. Aliás, não entendo qual é o motivo da pressa...
- Não é nada, Senhor Renato. Não é nada. Vou até o jurídico e já volto.
- Não demore, sim – finalizou ele.
Foi difícil para Renato desfazer seu matrimônio. Por sentir um carinho muito grande por Flávia, demorou a tomar coragem e dar fim ao estressante relacionamento. Desse modo, aquilo que havia começado de uma forma agradável, acabara por terminar em um mar de ressentimentos e brigas.
Com o princípio do declínio de seu casamento, Renato passou a fazer uso regular das bebidas alcoólicas que guarneciam o bar de sua casa. Valeu-se do álcool, em suas mais variadas formas, para esquecer os constantes atritos com Flávia. 
Por mais que suas lembranças insistiam em lhe dizer que a culpa advinha exclusivamente de sua ex-mulher, perguntava-se quase que diariamente se o seu destino não teria sido outro se bebesse menos.
Diferente da maioria dos homens, acreditava piamente que o casamento fosse algo especial, o inverso daquilo que o seu se tornara. Ele precisava de mais, muito mais, e foi por isso que decidiu seguir em frente.
A agenda de Renato estava assoberbada. Precisava escolher, ainda naquela manhã, uma pessoa que se encaixasse no perfil procurado para laborar no setor administrativo da empresa.
- Dona Sandra! – gritou Renato de sua sala.
- Sim, Senhor Renato?
- Peça para a Senhorita Júlia entrar, por gentileza.
 Não fosse pelo excessivo calor, aquela segunda-feira parecia igual a todas as outras. Ao chamar mais um aspirante a uma vaga no setor administrativo de sua empresa, ele jamais imaginaria que sua vida estaria prestes a mudar.
- Bom dia – disse ela.
- Bom dia. Pode sentar-se - respondeu Renato.
Era uma mulher muito atraente, bem diferente das candidatas que já havia entrevistado ao longo de sua carreira. Segundo seu cadastro, tinha vinte e nove anos e chamava-se Júlia Freitas.
 Seus cabelos eram castanhos claro com madeixas loiras. Tinha lábios levemente carnudos e deveria ter aproximadamente 1,70m de altura. Seus atributos somados – incluído nessa categoria seu corpo escultural – conferiam-lhe uma beleza estonteante.
Vestia uma saia preta até os joelhos, blusa cinza chumbo e sapatos de salto alto pretos. Usava brincos discretos e seu cabelo estava parcialmente preso. Sem dúvida, uma mulher elegante.
Além disso, com os olhos pouco carregados e sua boca rosada, estava perfeitamente maquiada. Raras eram as entrevistadas que se vestiam de modo adequado, o que chamou a atenção do subchefe do setor de Recursos Humanos. Detalhes que passavam despercebidos pela maioria dos homens eram imediatamente identificados por Renato, um legítimo estudante do comportamento.
  Mesmo julgando ser falta de ética contratar alguém por outros atributos que não aqueles ligados ao campo das aptidões intelectuais, decidiu contratá-la antes mesmo de ouvi-la. Abrir uma exceção diante de tão estupefata beleza não faria mal a ninguém.
Júlia, por outro lado, fitava seu futuro chefe com um olhar curioso e confiante. Tentava adivinhar o que se passava pela cabeça daquele belo homem de quase meia idade.
Com o intuito de tentar desvendar Renato, antecipando-se a eventuais ciladas normalmente afetas a entrevistas de empregos, ela desviou seu olhar por alguns segundos à procura de elementos que traduzissem o seu gosto pessoal.
Ao ver os quadros e livros que guarneciam o escritório de Renato, Júlia percebeu que se tratava de um homem inteligente, de alguém aparentemente merecedor da atual posição que ocupava dentro da renomada Exportadora Dutra. 
Renato, então, como se soubesse que estava interrompendo a análise superficial daquela bela jovem, perguntou-lhe: - Em que posso lhe ser útil, Senhorita Júlia?
- Como o Senhor já deve imaginar, vim para a entrevista de emprego.
- E quais são as suas ambições?
- Sinceramente, preciso crescer profissionalmente, por isso estou aqui – respondeu-lhe. Sem medo de parecer arrogante, continuou: - Tenho muito a oferecer a esta empresa. Posso lhe garantir que meu currículo é a prova maior de que tenho as aptidões necessárias para preencher o cargo.
Sua voz era suave, pensou Renato. Ademais, ficou impressionado com a objetividade de Júlia. Mostrava-se, até então, muito focada em seus objetivos.
Durante toda a entrevista, respondeu às perguntas de forma muito perspicaz, o que surpreendeu o subchefe. Sua beleza era tamanha que ficou pasmo ao perceber que se tratava de uma mulher inteligente. Não estava acostumado – ao menos em seu círculo social – a conhecer mulheres com ambas as qualidades tão acentuadas.
Ele, então, vibrando por dentro como um menino que acabara de ganhar um saco repleto de bolinhas-de-gude, abaixou sua cabeça e pôs-se a analisar o currículo da pretendente. 
Sua tentativa de concentrar-se foi em vão. Além de ter um sorriso estampado no rosto, sentia-se incomodado com a presença de Júlia. Achava um verdadeiro desperdício ater-se a palavras impressas enquanto uma mulher tão encantadora repousava em sua frente.
 Era aquele tipo de mulher capaz de parar qualquer estabelecimento sem mesmo estar vestida vulgarmente. Homens desejavam seu corpo no sentido sexual da palavra. Mulheres, não. Estas invejavam seu corpo, extenuando-se nas academias para um dia, quiçá, terem uma silhueta como aquela.
Apesar de ser jovem, possuía muita experiência, requisito essencial para trabalhar no setor de recursos humanos, especialmente em uma empresa grande como aquela.
Cada vez mais as expressões de Renato revelavam com entusiasmo seu contentamento, sendo desnecessário dizer qualquer coisa para que Júlia pudesse perceber que o emprego seria seu dentro de poucos segundos.
- Dê-me apenas um motivo para que eu a contrate – solicitou ele, na tentativa de disfarçar sua insensatez.
- Talvez eu não tenha o melhor currículo dessa pilha – afirmou, apontando para os cerca de 30 outros currículos dispostos sobre a mesa -, porém posso lhe garantir que sou a pessoa mais preparada para o cargo. Nasci para este emprego!
- Mais alguma qualidade que eu deva saber?
- Sou expert em decifrar pessoas, e isso é de grande valia em um trabalho como este. Tenho a certeza de que corresponderei à altura da confiança que me for depositada!
- Façamos um teste, então – propôs Renato. – Decifre-me apenas com as pouquíssimas informações que você possui ao meu respeito.
- Tem certeza?
- Estou esperando...
- Vejamos... Você deve ter entre 35 e 40 anos. Por estar tão bem vestido, deve ser uma pessoa vaidosa. Posso afirmar que você é um homem maduro, repleto de experiências.
- Prossiga! Até agora você falou apenas coisas superficiais, que qualquer um poderia saber. Diga-me o que você realmente acha de mim, sem medo.
- Ok. Embora você seja magro, não parece se preocupar muito com a saúde. É aquele tipo de homem que vive com intensidade, sem se importar muito com o futuro. Aquela garrafa de whisky atrás de você me diz que você bebe todos os dias, não com o intuito de relaxar, mas porque você gosta de beber. A sensação de euforia que o envolve após alguns goles a mais diverte você!
- Continue! – disse ele.
- No entanto, os vários romances sobrepostos em sua estante dizem-me que você é um romântico inveterado, à procura da mulher perfeita. Aprecia bons vinhos e não costuma economizar em viagens ou em coisas que lhe dão prazer de verdade.
- Continue, continue. Estou gostando do que estou ouvindo.
- Não usa aliança, o que demonstra claramente que você já foi casado algum dia.
- Eu não poderia ser solteiro?
- Homens como você não costumam ficar sozinhos... Aliás, o fato de você ter usado o verbo ‘poder’ no passado só corrobora meu pensamento. Estou certa?
- Certíssima. Estou impressionado. Diga-me, Júlia, você tem certeza que posso confiar no seu trabalho?
- Sem a menor sombra de dúvidas.
Renato já estava decidido a contratá-la há uns dez minutos. Continuava a indagá-la apenas com o intuito de saber mais coisas a seu respeito, visto que realmente ela havia lhe chamado a atenção.
- Se eu lhe perguntasse sobre programas de auditório, desses que passam todos os dias à tarde na televisão, o que você me responderia?
- Lixo. Todos não passam de lixo.
- Ok. O emprego é seu.
- Se eu soubesse que essa resposta lhe agradaria tanto, teria dado minha opinião sobre a música que se faz hoje em dia – disse ela, brincando.
- Você se saiu muito bem na entrevista... Seu currículo é impressionante... Tenho certeza que a empresa só tem a ganhar com sua admissão.
- Muito obrigada, farei o melhor possível – disse Júlia, educadamente.
- Até amanhã – exclamou Renato, seguido de um suave aperto de mãos. – Tenho certeza que nos daremos muito bem – completou.
Júlia abriu um sorriso discreto. Em seguida, descruzou suas pernas, levantou-se e saiu da sala. Renato, agora mais calmo, pôde observá-la melhor, e confirmou aquilo que já havia constatado: ela era absurdamente linda.
Enquanto saía, Júlia olhou mais de perto alguns dos autores dispostos categoricamente na pequena biblioteca de Renato. Viu nomes como Saramago, Platão, Schopenhauer, Veríssimo, Machado de Assis, entre outros. Ficou curiosa. Indagou-se no sentido de tentar descobrir se ele realmente lera aquelas obras ou se elas ali estavam apenas para dar charme ao ambiente.
Dona Sandra, secretária de Renato, estranhou a demora da entrevista. Nunca, em todo tempo que trabalhara com seu chefe, testemunhou uma seleção demorar mais do que um sexto de hora. Aquela, ao contrário, havia perdurado por incríveis 42 minutos, contados no seu nada discreto relógio.
-   Posso chamar a próxima, Senhor Renato?
- Não, Dona Sandra. As entrevistas acabaram por hoje. Já encontrei a funcionária ideal. Peça aos outros candidatos que tentem uma vaga no setor de produção da Empresa, eis que a do setor administrativo já está devidamente preenchida pela Senhorita que acabou de sair.
- Mas e a Dulce? – perguntou a secretária.
- Que Dulce?
- Aquela minha prima do Paraná, de quem lhe falei outro dia. Ela...
- Ela pode tentar novamente na próxima seleção. Agora, deixe-me sozinho, tenho muito trabalho a fazer – determinou Renato.
- Mas...
- Mas o quê?
- Nada. Nada... – respondeu a secretária, furiosa.
Somente depois que a secretária falou de sua prima, Renato entendeu o motivo pelo qual aquela estava se mostrando tão prestativa. Os interesses do subchefe do setor, no entanto, estavam totalmente voltados para sua mais nova funcionária.
O currículo de Júlia era mesmo impressionante, assim como as referências enviadas pela última empresa na qual havia trabalhado. Segundo os dados ali explicitados, ela era solteira, natural de Caxias do Sul e graduada em administração de empresas, bem como possuía duas especializações em psicologia, sendo uma delas voltada para a área organizacional.
Com um histórico daqueles, imaginou Renato, poderia trabalhar em qualquer empresa do país. Sorte sua ter escolhido a exportadora Dutra.
No dia seguinte, sua primeira providência foi nomear Júlia seu braço direito na empresa. Alegou a Henrique, entre outras coisas, que precisava de uma ajudante, haja vista que a contratação de pessoas crescia de forma imensurável naquela época do ano. O interesse em Júlia era tão grande que mandou colocar outra mesa em sua sala, de forma que pudessem ficar o dia inteiro juntos, trabalhando lado-a-lado.
Renato jamais havia feito algo do gênero, valendo-se do cargo que ocupava para beneficiar-se. Era um homem íntegro, responsável e, sobretudo, correto no que se referia ao seu emprego. Mas agora era diferente, tratava-se de algo maior, algo importante.
Naturalmente, a convivência fez com que ficassem próximos, porém não tanto quanto Renato desejava. Tentava de todas as maneiras possíveis descobrir algo sobre a vida particular de Júlia, mas eram poucas as informações que conseguia arrancar de sua colega.
Alguns funcionários do setor passaram a desconfiar do comportamento de seu chefe. Logo perceberam que sempre que ela se aproximava de Renato, este ficava com um olhar perdido, como se os sentimentos que o envolviam fossem exacerbadamente fortes.
Com o passar das semanas, no entanto, a vida de Renato tomou outro rumo. O interesse agradável que nutria por Júlia acabou se transformando, para seu desespero, em uma angústia infindável. Um sentimento intenso, quase indisfarçável.
Vê-la todos os dias, sentada junto à mesa em frente à sua, tornara-se uma tarefa difícil, mormente pelo fato de que Júlia não lhe dava a abertura que tanto necessitava para tentar declarar seus sentimentos. Então, não aguentando mais a carga emocional a que estava sendo diariamente submetido, Renato resolveu tomar uma atitude.
Chegou cedo à exportadora naquela quinta-feira. Trabalhou normalmente até as 16 horas e, daquele horário em diante, apenas esperou o momento certo. Tão-logo ficasse a sós com Júlia, convidá-la-ia para um encontro.
Após certificar-se de que sua intransigente secretária havia ido embora, tomou um copo de whisky como quem toma coragem e arriscou sua sorte. 
- Júlia... Estive pensando... – disse ele, pausadamente.
- O quê?
- Você tem algum compromisso hoje à noite?
- Não, por quê?
A resposta em forma de pergunta, feita por Júlia, deixou-lhe nervoso. Renato sabia que não podia mais recuar sem que ela desconfiasse de seu interesse.
- Sabe, ando meio estressado ultimamente. Acho que estamos trabalhando demais e nos divertindo muito pouco. Você não acha?
- É verdade. Trabalhamos bastante neste mês. Malditas exportações! – disse ela com um largo sorriso.
Enquanto ria da brincadeira de sua colega, Renato percebeu que uma gota de suor escorreu em sua testa. No entanto, por mais nervoso que estivesse, não poderia permitir que aquela situação se prolongasse por mais tempo. Perguntou, enfim.
- Quer sair comigo hoje à noite?
Júlia não respondeu de imediato. Apenas virou sua cabeça para a esquerda, dando a entender que estava pensando na proposta de seu chefe, o suficiente para fazê-lo tremer.
- Sim. Estou precisando mesmo me distrair. Faz tempo que não saio de casa. Em que você está pensando, exatamente? – perguntou-lhe.
- Conheço um restaurante italiano excelente. Podemos jantar, beber vinho e ouvir um pouco de música – respondeu.
Na verdade, Renato queria fazer muitas outras coisas. Porém, achou melhor conter sua sinceridade; talvez ela não reagisse bem às ideias que tinha em mente.
- Perfeito. Você pode me buscar em casa? – perguntou Júlia.
Por você vou até o inferno, pensou Renato.
- Posso, é claro.
- Espero você às 21h, então.
- Certo. 
Conforme haviam combinado, chegaram juntos ao restaurante italiano no carro de Renato. Tratava-se de uma casa especializada em massas de renome no sul do país, na qual ele sempre levava alguém por quem estivesse interessado. Mais do que possuir belas refeições e vinhos de excelente procedência, era um local extremamente romântico, frequentado em sua grande maioria por casais.
As mesas eram dispostas de forma que os casais tivessem privacidade e eram iluminadas por velas postas em impecáveis candelabros banhados a ouro. Já na entrada, podiam-se ouvir, ao fundo, as músicas tipicamente italianas interpretadas por Rui Spichare, um imigrante italiano de 76 anos muito amigo de Renato.
Sentaram-se próximo ao bar e ficaram contemplando por alguns instantes as canções executadas com perfeição pelo intérprete, as quais davam ao lugar um ar ainda mais nostálgico.
- A próxima música será dedicada ao meu grande amigo Renato e à sua bela acompanhante – disse o intérprete, logo que os avistou sentados junto ao bar. Rui, então, piscou o olho para Renato e com um vozeirão pôs-se a cantar uma bela serenata.
- Muito gentil o seu amigo. Ele sabia que viríamos aqui hoje?
Na tentativa de mostrar-se misterioso, Renato apenas sorriu. Em seguida, conduziu Júlia até a mesa indicada pelo maitre.   
Sentaram-se junto a uma mesa um pouco afastada, reservada estrategicamente por Renato antes mesmo de Júlia aceitar o convite.  
- Você está linda! - investiu ele, logo que sentaram.
- Obrigada – respondeu ela, meio constrangida.
- Os Senhores aceitam alguma coisa? - interrompeu o garçom, educadamente.
Renato estava disposto a tratá-la muito bem. Não queria tão-somente expressar seus sentimentos, despejando sobre Júlia tudo o que sentira nas últimas semanas. Antes, queria impressioná-la. Assim, pediu ao garçom que trouxesse seu melhor e mais caro vinho.
- Como o Senhor desejar. Trarei a vocês nosso melhor Cabernet – respondeu o prestativo funcionário da casa.
Cabernet Sauvignon é, na verdade, uma casta de uvas originária de Bordeaux, no sudoeste Francês, da qual é fabricado um vinho de excelente qualidade – explicitou Renato a Júlia com o intuito de quebrar a tensão inicial.
- Não precisa se exibir, Renato. Sei que você é um grande apreciador de vinhos – disparou Júlia, com um sorriso debochado. - Além do mais, sou natural de Caxias, lembra?
Renato sentiu-se embaraçado com a brincadeira. Com o passar dos minutos, no entanto, e alguns goles de vinho depois, a conversa começou a enveredar para um lado mais informal. Falaram sobre música, línguas, viagens e sobre desilusões amorosas.
Júlia falou um pouco sobre sua família, suas origens e o que a levara a cursar administração de empresas e a especializar-se em psicologia. Confessou a Renato que devorava livros e mais livros sobre o assunto, bem como que não passava uma noite sequer sem ao menos ler umas 40 páginas.
Após muitos sorrisos e duas garrafas de vinho, Renato acreditou que estava na hora de confessar a Júlia seus sentimentos. Queria fazer isso antes que ela pedisse para irem embora.
- Posso lhe contar uma coisa, Júlia?
- Pode, claro – respondeu ela.
- Tenho algo importante para lhe dizer, mas me falta coragem. E sinto que se eu não falar agora, não falarei nunca mais.
- Fale de uma vez, homem. Está me deixando preocupada.
- Não é tão simples assim – ponderou Renato. – Mas também não é nada que você precise se preocupar.
- Pode falar, prometo que serei compreensiva, seja o que for.
- Antes, prometa-me que não vai ficar zangada.
- Você está me demitindo? – perguntou Júlia, antes de soltar uma gigantesca gargalhada. - Desculpe-me, Renato, estou só brincando. Como eu disse, prometo que serei compreensiva!
- A verdade é que gosto de você mais do que deveria. Pronto, é isso... – desabafou Renato, enfim.
Por um instante, parecia que tinha retirado um caminhão de suas costas. Curiosamente, aquela sensação lhe pareceu extremamente prazerosa. Sentiu-se vivo, desafiado.
Antes que Júlia pudesse dizer qualquer coisa, tornou a desabafar: - É difícil para mim lhe dizer isto, mas você anda mexendo com meus sentimentos. Quando me aproximo de você, tenho vontade de falar sem parar, necessidade de chamar sua atenção, de agradá-la em excesso. Desde o dia em que a contratei, não consigo fazer outra coisa a não ser pensar em você.
Júlia ouvia tudo sem qualquer expressão aparente e ele, nervoso, continuou expondo seus sentimentos: - É engraçado, mas toda vez que a vejo, meu pulso acelera, minha respiração fica ofegante... Parece que estou...
- Apaixonado? – perguntou ela, de forma abrupta.
- Sim – respondeu Renato, meio sem graça. - Não me recordo de já ter sentido isso por outra mulher... Sempre li que a paixão nos retira o chão, que nos faz sofrer, mas nunca tinha sentido isso na pele.
Olhou para Júlia e percebeu que seu rosto havia enrubescido. Não sabendo distinguir se aquilo era bom ou ruim, prosseguiu argumentando: - Sinto-me como um adolescente. Vê-la todos os dias já não me basta, e por isso estou aqui abrindo meu coração. Você é simplesmente perfeita. Poderia, aliás, passar a noite inteira enumerando suas qualidades. Dizendo o quão você é linda, inteligente, simpática, esperta, delicada, meiga, essas coisas...
Quase cansado diante de tantas revelações, fez uma pausa. Em seguida, olhou nos olhos de Júlia e finalizou: - Sei que pareço superficial, mas acredite ou não é exatamente assim que eu me sinto. Preciso de você.
Júlia ouviu tudo com uma expressão fechada, dando a entender que qualquer resposta poderia sair de seus belos lábios. 
Embora fosse um conquistador, Renato nunca fora considerado um homem promíscuo. Todas as suas conquistas, sem exceção, envolviam algum tipo de sentimento. Ao contrário de grande parte dos homens, sempre procurava sua cara-metade, alguém realmente capaz de fazê-lo feliz.
Com Júlia não era diferente. Não estava ali apenas tentando conquistar outra mulher, mas alguém apto a lhe propiciar aquilo que sempre buscara.
O garçom aproximou-se do casal e começou a servir a sobremesa, naquela que parecia ser a pior hora possível, pensou Renato um pouco irritado. Enquanto isso, Júlia fitava-o intensamente, como quem pensava naquilo que iria dizer. Seu olhar era demasiadamente penetrante e a tensão ali gerada parecia extrapolar as barreiras do aceitável.
Júlia esperou o garçom retirar-se e, após alguns segundos, os quais pareceram uma eternidade para seu chefe, disse-lhe exatamente o que não queria ouvir.
- Desculpe-me desapontá-lo, Renato, mas não sou a mulher que você está procurando. Francamente, estaria mentindo se não dissesse que também me senti atraída, mas isso é muito pouco perto do que você almeja. Sempre serei sua amiga, e nada mais – decretou Júlia.
- Isso é um não? - perguntou Renato, desoladamente.
- Exato. Peça a conta e vamos embora, amanhã temos que trabalhar.
Em um silêncio constrangedor, entraram no carro e partiram.